quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Este não é sobre a China...

  Este texto não pretende falar exatamente ou unicamente da China...

  Algumas coisas que me chegaram nos últimos dias me fizeram pensar sobre situações daqui e de lá (China) que nos parecem tão absurdas à luz da nossa (ilusória) liberdade...
  Sábado (9/10/2010), um amigo meu estava bastante contente, pois ganhara uma reprodução da "Última Ceia" (Leonardo da Vinci) em uma rifa. Ao comentar sobre o assunto com uma amiga, meu senso de curiosidade foi buscar por informações da dita obra. Descobri, por exemplo, que não se trata de um quadro mas sim de um mural; que não está em um museu e sim no refeitório de um convento na Itália; descobri que muitos dos quadros que as pessoas tem em casa (meus pais tem um que eu ganhei certa feita num bingo...) são releituras da obra original; entre outras coisas...
   O que me assustou, de fato, foi o artigo da Wikipedia portuguesa sobre tal obra: o início do artigo traz a citação "Representa a cena da última ceia de Jesus com os apóstolos e também Maria Madalena(sua esposa)pode-se notar que entre Jesus e Maria Madalena , faz-se a letra M de matrimônio ou então de Maria Madalena, antes de ser preso e crucificado como descreve a Bíblia." Agora, basta um best-seller para tornar um argumento de ficção como realidade? O resto do artigo está (relativamente) bem escrito, mas bem sabemos que um estudante de 1º ou 2º grau vai dar mais atenção ao início do artigo (que está lá para trazer as informações gerais sobre o assunto que pretende descrever), e vai se deparar com esta estapafúridia citação sem fundamento científico (cito aqui como científico o site Leonardo3 - disponível também em italiano - com estudos sobre as obras do grande inventor e artista que foi da Vinci).
   Já sabia bem que a Wikipedia.pt não é lá grande coisa, mas esse tipo de "bobagem" (trazer um argumento de ficção como descrição de um artigo) é digno do desmerecimento completo de uma instituição que pretende manter uma enciclopédia (cujo objetivo é disseminar conhecimento, não informações incorretas - para tanto existe a Desciclopedia, a enciclopédia livre de conteúdo e que qualquer um pode editar, que tem a vantagem de cumprir seu objetivo...). Cabe salientar que o artigo em espanhol está muito bem escrito, rico em detalhes e links, e cita a obra de Dan Brown, deixando o link para discorrer sobre a novela do autor; enfim, nem tudo está perdido, desde que se saiba outro idioma (há bastante tempo me utilizo do método português-español-engilsh para estudar alguma coisa tendo a Wikipedia como referência, parecendo-me a versão portuguesa mal construída e com informações incorretas).

  E o que tem isso a ver com China???

  Antes, outro fato: recebi um email como tantos outros que costumo receber que falam mal da política em nosso país (o que não é difícil - vide Tiririca), mas que, por motivos desconhecidos, me provocou a curiosidade de pesquisa-lo (como eventualmente eu faço - já havia feito o mesmo com uma suposta lei, um hoax que circulava há uns 10 anos...).
  O dito email apresenta o decreto 6.381/2008, apresentando, porém, antes do conteúdo do decreto as seguintes frases:
  • Veja o que o Lula já providenciou para "depois" de largar a boquinha e arrumou para si. Realmente é um baita picareta revestido de presidente. 
  • Também ajeitou para a Marisa para que ela não volte a ser doméstica.
  • Quer saber pra onde vai seu Imposto de Renda?
  A quem não tiver paciência de ler o conteúdo do link anterior, resumidamente: ex-presidentes tem direito a seguranças (4), assessores (2), motoristas (2) e veículos (2); candidatos à Presidência da República tem direito a segurança pessoal, exercida por agentes da Polícia Federal.
  Enfim, tudo isto é verdade. Culpar, porém, o atual presidente (sem defesas ou ataques à referida pessoa), a lei que trata do assunto e os subsequentes decretos são anteriores:  e lei 7.474/1986, decretos 94.090/1987, 98.927/1990 e 1.347/1994. Quem tem memória boa (ou quiser buscar na internet) percebe que a lei remete aos tempos do Sarney, com decretos também do Itamar Franco. A ideia era criticar uma pessoa, quando o problema real encontra-se no sistema...

  E o que isso tem a ver com a China???

  No dia 8 de outubro, foi (pouco) divulgada (mesmo fora da China) a premiação com o Nobel da Paz para 刘晓波 (Liu Xiaobo, escrito em chinês). Tem dado o que falar, mas, até agora, até que foi pouco...
  Para se ter uma ideia: é como se outro país quisesse mudar o carnaval no Brasil para o inverno; ou tornar o futebol uma prática proibida no país; ou alguém (de fora) dissesse ao gaúcho que deveria vestir saia ao invés de pilcha no 20 de setembro (o artigo da Wikipedia intitula-se Guerra dos Farrapos, ainda que, na média, os gaúchos prefiram Revolução Farroupilha como denominação).
  Estamos falando de política, cultura e história. 
  Na questão cultural: muito do que é normal para nós, é estranho para os chineses, e vice-versa. Vide coisas cotidianas (exemplo: o uso de talheres no ocidente, e de 筷子 - kuaizi - na China). Para nós até parece fácil, visto que o Brasil não possui uma cultura, e sim uma pluralidade delas (aos gaúchos que se consideram tradicionalistas: bombacha tem origem mouro-espanhola ou até turca; já o chimarrão vem dos índios guaranis que aqui habitavam, ou seja, "é daqui")
  Na questão histórica: (aos gaúchos é mais fácil de entender, pois por 10 anos tivemos uma República, enquanto que o Brasil foi abandonar a monarquia 54 anos mais tarde...) Imaginem um povo que se viu drogado por mercadores estrangeiros, e, quando seu governo tentou defendê-lo, (por duas vezes) foi esmagado pelas potências estrangeiras que forneciam a droga (vide Guerras do Ópio); quando ocorre um levante nacionalista (Levante dos bóxers - texto en español), estes são fortemente reprimidos pelos estrangeiros (semelhança com os farroupilhas?), a exemplo do que o kaiser (rei alemão) Guilherme II disse aos soldados "fazer que a palavra 'alemão' seja recordada na China durante mil anos, de maneira que nenhum chinês volte a atrever-se sequer a olhar mal para um alemão" (livre tradução minha do texto constante na Wikipedia em espanhol). Historicamente, os chineses não tem boas recordações dos ocidentais...
  Na questão política: algumas vezes dizemos que a grama do vizinho é "mais vermelha" (se a "grama mais verde" significa "melhor", já dá para entender o trocadilho...); dizemos que o comunismo não é bom para a China, que o país vive uma ditadura maquiada como popular, que a censura reprime o povo... O que digo agora é forte: uma nação (ou parte dela) que depende de esmola do governo para sobreviver (que esta fosse uma solução provisória, ou um programa de apoio, como mais tarde vieram os programas habitacionais; mas não como é para muitos, que torna-se uma solução permanente), uma democracia que elege como deputado uma pessoa que tem como slogan "pior que tá, não fica"; que tem uma grande mídia condutora de opinião e de massas (vide estrondosos sucessos de 1-ano-atrás-e-não-é-mais e de é-agora-e-não-será-ano-que-vem; ou as famosas mulheres-fruta; ou os noticiários-tragédia; ou uma revista que adora causar uma polêmica para vender uns exemplares a mais). Podem ter certeza que nossa graminha verde-amarela não é melhor (talvez nem pior, talvez só diferente) que a graminha vermelha do nosso nem tão vizinho... Lembrando que a graminha vermelha deles é a atual 2ª graminha mais bonita do mundo

   Ah, e o que tudo isso tem a ver com a China?
  A nossa liberdade de expressão nos permite alcançar muitas coisas boas (cultural e intelectualmente falando), mas a grande mídia não traz isso para o grande povo... A nossa liberdade de acesso nos dá oportunidade de contato com muita informação, inclusive incorreta (como os exemplos citados da Wikipedia ou hoax nos nossos emails; ou ainda reportagens mal escritas - outro dia li na revista em papel sobre satélites que orbitavam a 30 km de altitude, o que é impossível -; ou os famosos ctrl-c ctrl-v que os sites de notícias daqui costumam fazer sem verificar a procedência). O governo chinês alega "proteger" o povo ao promover a censura, mas nós sentimo-nos como com nosso "conhecimento"? Somos nós que formamos nossa opinião? Talvez eu e você (que teve paciência para ler todo o texto e tirar suas próprias conclusões, por exemplo) tenhamos, mas e o povo que acompanha a grande (e manipoladora) mídia?
  As tentativas de abertura comercial da China provocaram guerras e conflitos desde o século XIX. A China já conquistou o mundo (tudo é made in China), mas o capital ainda não conquistou (será?) a atual maior população do mundo. Quem ganha com a democratização da China Comunista não são os chineses, nem algum país, e sim o capital, as grandes corporações que ainda não estão estabelecidos na China. O que tem acontecido é uma desestabilização global depois (primeiro Japão e Coréia do Sul, depois) da China exportadora (o pessoal da Zona Coureiro-Calçadista do RS sabe do que estou falando - quando as empresas do Sul migraram para o Nordeste para concorrerem com a mão-de-obra "barata" - alguns dizem "escrava" - chinesa), e os grandes detentores do capital estão tentando reverter esse fluxo, para tornar a China importadora (situação parecida quando a China exportava seda, porcelana e chá para a Europa, e não importava nada - situação que gerou a introdução ilegal de ópio indo-britânico na China, e estourou a 1ª Guerra do Ópio)

  E parece que fazem isso (do Prêmio Nobel) só para cutucar o dragão com a vara curta... Assim como em todos os lugares do mundo, tem chinês contente e tem chinês descontente com a maneira como as coisas acontecem no seu país. O problema é essa tentativa de pintar de $ a grama vermelha que eles tanto gostam... Há dois anos, a graminha verde do tio Sam não se mostrou tão bonita quanto parecia, e a graminha vermelha estava cada vez mais formosa (sem menção à ilha que tem esse nome...)

  E o que isso tem a ver com a China? A solução de um pode ou não funcionar para o outro. Uma censurinha leve no Brasil talvez não caísse mal, mas, depois da ditadura militar no Brasil,  ninguém gosta de ouvir, ler ou falar em censura. Enquanto é uma coisa natural (talvez até benéfica) para o povo (mais para o governo) chinês.

  Enquanto olharmos para a China (ou qualquer outro país) com nossos olhos ocidentais, muita coisa não nos fará sentido... Não é questão de ser melhor ou pior, e sim diferente!

Enfim: teríamos assunto para dias de discussão, mas vai que algum chinês que não entende bem o português leia este texto e compreenda mal o sentido do que está escrito? Afinal "o que é bom para mim, pode não ser bom para ti"...

2 comentários:

  1. Soci, li o teu texto, mas vale lembrar que como tu mesmo disse no texto anterior, tem brasileiro que acha que a ditadura foi boa. E o Brasil existe censura sim, e é exatamente nos arquivos da ditadura. Pouco se fala, nada se julga (vide os argentinos), nada se condena na justiça.
    Porém, nós podemos escrever este blog e falar sobre isso (posso fazer um site só sobre isso inclusive) e não corremos o risco de irmos presos.
    Podemos falar sobre isso sem o risco de sermos denunciados à polícia.
    Essas coisas não são conhecidas pelos chineses, que convivem diariamente com a censura da TV, da internet, dos jornais, dos livros.
    Afora a situação do Tibete, de Taiwan e de outras regiões.
    Mas quem nunca conheceu a liberdade e nem tem como conhecê-la também não pode julga-la muito bem...Sempre que penso neste tipo de coisa lembro do livro 1984 (ótima leitura, com certeza censurada na China). Mas quem sabe não vejamos uma revolução chinese em breve. Eles já mostraram que são capazes (vide a longa marcha e a tomada de poder pelo Mao)!

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  2. Os arquivos da ditadura são considerados secretos pois são considerados 'documentos que tratam da segurança nacional' (ha!).

    Talvez o melhor para o Brasil (lembrando que, na verdade, sou separatista!) não fosse realmente uma censura (ainda que leve) dos meios de comunicação: o problema é a falta de ética que tem tomado conta de meios como a mídia e a política (na mídia: ctrl-c ctrl-v ou repasse de informações completamente incorretas, sem uma posterior nota de correção!; na política: poucos nos restam que possamos dizer 'esse eu posso confiar', ou mesmo as agressões ideológicas que vemos na campanha atual).

    Talvez a nova geração de chineses seja capaz de influenciar seus filhos, mas não sei se eles não estão tão acomodados quanto os brasileiros para tomar alguma atitude. A política do filho único talvez tenha influenciado a chinesada mais nova a ter um pensamento mais individualista...

    Certa feita, um professor fez um gráfico 'Felicidade X Conhecimento': uma simplificação que explica um pouco as coisas (no Brasil e na China)...

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